Quando a objetividade encontra a poesia
Um ensaio sobre a ambivalência e a subjetividade num futebol algorítmico
Por razões absolutamente particulares - também conhecidas como trabalho - muito raramente assisto ao vivo aos jogos da UEFA Champions League. Em condições normais, é um horário em que estou dando treinos. Em condições anormais, admito que sou meio tomado pela minha predileção por jogos em reprise, ao invés de ao vivo. Tenho alguns motivos para isso e posso até escrever sobre eles num outro momento. Mas, objetivamente, acho uma forma mais econômica de consumo do futebol.
Por isso, soube da atuação de Neymar contra o Bayern de Munique, pelo jogo de volta das quartas-de-final, primeiro pela repercussão nas redes sociais, em que passei os olhos de vez em quando, depois mais tarde, quando assisti ao jogo de fato. Ao menos na minha timeline, parecia se tratar de mais uma exibição irrepreensível daquele que talvez seja o mais artístico jogador de futebol do mundo. Assistindo ao jogo, fiquei com a impressão de que Neymar jogou melhor do que o Paris Saint Germain, o que tem seus ônus e bônus: embora não tenha sido uma performance coletiva desastrosa, também não foi dominante. A dificuldade de retenção da posse, especialmente no primeiro tempo, não foi acompanhada de pressões mais fortes sobre o portador da bola, especialmente quando o Bayern especulava pelo segundo terço do campo, com o PSG em bloco médio/baixo. Me pareceram bem claras as intenções do Bayern em tirar vantagem dessa espécie de 4-4-1-1 do Paris para articular o ataque a partir de Lucas Hernández, buscando particularmente as inversões no sentido de Leroy Sané, bem aberto, a que se sucediam as ultrapassagens de Benjamin Pavard, criando eventuais situações de 2 v 1 sobre o lateral-esquerdo Abdou Diallo. Aliás, de um ponto de vista estratégico, me pareceu um jogo cheio de camadas - ainda que as camadas não se convertam, necessariamente, em soluções. Só no primeiro tempo, Mauricio Pochettino fez pelo menos três nítidas alterações posicionais entre Neymar, Angel Di María e Julian Draxler, enquanto que Hans-Dieter Flick claramente sobrecarregou o corredor central nos últimos quinze minutos, buscando pesar a linha de quatro parisiense.
O fato é que, logo após o jogo, a mesma timeline se mostrou bastante irritada com a nota atribuída a Neymar pelo SofaScore - aplicativo de que sou usuário, inclusive. Pelos algoritmos, Neymar fechou o jogo com 5.8. Pelos não-algoritmos, Neymar foi o melhor em campo.
Neste texto, não pretendo discutir nada específico do SofaScore. O colega João Izzo, que trabalha na empresa, escreveu um fio suficientemente ilustrativo sobre isso. Aqui, o que gostaria de fazer é pegar este exemplo como um fio para discutirmos uma outra coisa, que me parece bastante presente, e tem a ver com o par objetividade/subjetivade no futebol. Mais especificamente com uma negação de qualquer traço de subjetividade em nome de uma certa higienização do jogo. Vejamos.
Ainda na primeira graduação - e lá se vão mais de dez anos - fui bastante influenciado pela produção do Zygmunt Bauman, exímio sociólogo polonês, falecido há quatro anos. Bauman foi um sujeito que me fez pensar melhor sobre a incerteza do mundo, interpretada por ele de forma muito particular, a partir da metáfora do líquido: na modernidade, como escreveu o Marshall Berman, tudo o que é sólido desmancha no ar. À época, meu trabalho de conclusão de curso teve como um dos quadros teóricos justamente o Bauman, especialmente a partir daquele que talvez seja um dos seus maiores livros, Modernidade Líquida.
Mas há um trecho particularmente interessante logo nas primeiras páginas de de um outro livro, Modernidade e Ambivalência, no qual ele faz uma observação muito pertinente ao tema que gostaria de apresentar aqui. Bauman vai escrevendo sobre a ansiedade, típica de uma era moderna, para se classificar as coisas da maneira menos ambígua possível. Sobre isso, ele diz o seguinte:
O ideal que a função nomeadora/classificadora se esforça por alcançar é uma espécie de arquivo espaçoso que contém todas as pastas que contêm todos os itens do mundo — mas confina cada pasta e cada item num lugar próprio, separado (com as dúvidas que subsistam sendo esclarecidas por um índice de remissão recíproca). É a inviabilidade de tal arquivo que torna a ambivalência inevitável. E é a perseverança com que a construção desse arquivo é perseguida que produz um suprimento sempre renovado de ambivalência.
Acho um trecho interessante porque a ambivalência, como vocês sabem, é o oposto da objetividade. Não existe objetividade ambivalente: ou tal coisa é, ou tal coisa não é. Mas, no mundo da vida, as distinções não são tão claras assim. No caso específico de um Neymar, o algoritmo (cuja programação depende da razão humana a priori) analisa um certo número de variáveis, de um modo que só pode existir enclausurado no seu próprio invólucro. Um algoritmo não tem imaginação - talvez porque não tenha emoções. O sentimento que se tem após 250 pedaladas do Neymar sobre o Alphonso Davies, antes de um chute cruzado de esquerda na trave, não faz nem uma cócega sequer num algoritmo, cujos limites estão subjacentes às instruções que lhe foram dadas. O algoritmo não pode deixar de ser visto como um instrumento objetivo para um fenômeno absolutamente ambivalente, como é o futebol.
Ouvindo a um recente episódio do The Pitch Invaders - belo podcast produzido pelo Footure - cujo convidado foi o grande amigo Carlos Thiengo, notei a mesmíssima presença da ambivalência, quando Thiengo foi perguntado, acho que pelo Eduardo Dias, sobre a enorme dificuldade em se delimitar as variáveis apresentadas por cada uma das bases de dados modernas: afinal, o que é um drible? O que é uma bola aérea? O que é um passe-chave? É uma discussão absolutamente legítima e, ouvindo ao episódio, pensei justamente nessa aflição que a modernidade nos apresenta para se definir as coisas - talvez porque caminhar em terreno arenoso não seja exatamente confortável. O drible, de um ponto de vista semântico, pode até ser definido. Mas o mesmo drible, de um ponto de vista do jogo, não - e é justamente a ambivalência do jogo que derrete mesmo a mais rigorosa definição. O futebol é curioso porque oferece certas formas de coisas que, ao menos no estatuto presente da linguagem, não apenas não conseguem ser definidas, como encontram sua potência justamente no não-dito, mais até do que no dito. Um drible do Neymar, por mais genial que seja, terá a mesma validade estatística de um drible do Choupo-Moting. Mas as palavras (que nós não temos) para definir o drible de um Neymar serão sempre absolutamente diferentes.
Aliás, ainda sobre a ansiedade pela definição, o próprio Bauman, no mesmo livro a que me referi acima, escreve o seguinte:
A prática tipicamente moderna, a substância da política moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão - e suprimir ou eliminar tudo que não poderia ser ou não fosse precisamente definido. A prática moderna não visa à conqusta de terras estrangeiras, mas ao preenchimento das manchas vazias no compleat mappa mundi. É a prática moderna, não a natureza, que realmente não tolera o vazio.
No caso específico do futebol, sinto que há um deslocamento bastante razoável, especialmente no transcorrer da última década, de tudo aquilo que se entende por subjetivo no sentido de tudo aquilo o que se entende por objetivo. Tanto de um ponto de vista da imprensa quanto de um ponto de vista da prática profissional - onde me incluo, considerando inclusive que faço parte do grupo de profissionais do futebol cuja formação passa originariamente pela universidade -, é bastante nítido que a subjetividade foi passando a ser vista como uma coisa amorfa, contaminada, impura, estranha, inferior, secundária, imprecisa, odorenta e incredível, ao passo que o que se entende por objetividade caracteriza um tipo saber limpo, puro, confortável, superior, primário, preciso, perfumado e absolutamente credível.
Se levarmos em conta a particular tradição do futebol brasileiro, que é profundamente empírica (portanto, vinculada à experiência), de fato faz sentido um questionamento mais objetivo: a empiria, sozinha, talvez seja insuficiente para dar conta de todo o tecido do jogo. O problema é que não existe apenas o questionamento da experiência: o que se está criando, e escrevo isso com absoluta segurança, é uma noção de que todo e qualquer traço de subjetividade contamina e interdita o debate. Com isso, explicitamente ou não, estamos perdendo os mais finos traços de sensibilidade na nossa relação com o futebol, criamos relações mais frias com o jogo e com os nossos pares (pois o conhecimento objetivo é mais importante do que as impressões subjetivas), criamos um ambiente em que o senso crítico torna-se cada vez mais raro (pois não é preciso problematizar o está objetivamente apresentado) e, não por acaso, cometemos erros absolutamente inacreditáveis de um ponto de vista teórico-prático - como, por exemplo, achar que a intuição é um saber menor do que uma suposta racionalidade, ainda que a tomada de decisão humana seja violentamente intuitiva.
Mas é claro que não se trata de um vício genuinamente brasileiro. Pelo contrário, também nos alimentamos de uma dieta que não parece muito íntima da ambivalência. É um dos motivos porque escrevi, certa vez, uma breve crítica ao primeiro capítulo do circulado livro The Expected Goals Philosophy, escrito pelo James Tippett, que termina com uma afirmação peremptória que, ao menos aos meus olhos, não desce nada bem. Transcrevo no original para não contaminá-la com a minha subjetividade:
In order to avoid being fooled by randomness, we should direct more attention to the Expected Goals totals amassed from each game. This will allow us to assess performances, rather than results. Only when we fully embrace the Expected Goals method can pundits begin to more accurately comment of football. Only then can managers give more reasonable post-match interviews. Only then can the fans select the best players for their fantasy teams. Only then can we haul football out of the dark ages and into a more intelligent era of analysis.
É claro que o futebol não está separado do mundo da vida. Pelo contrário, a apropriação do que se entende por objetividade, em detrimento de todo e qualquer traço subjetivo tem raízes muito mais fundas. Há uma citação do Jorge Larrosa, cuja escrita me é quase bíblica, naquele belíssimo livro Tremores, que desenha bem a origem e alguns dos fundamentos dessa contradição e da preferência pelo objetivo. Escreve ele:
Na filosofia clássica, a experiência foi entendida como um modo de conhecimento inferior, talvez necessário como ponto de partida, porém inferior: a experiência é só o início do verdadeiro conhecimento ou inclusive, em alguns autores clássicos, a experiência é um obstáculo para o verdadeiro conhecimento, para a verdadeira ciência. (…) A experiência (empeiria) é inferior à arte (techné) e à ciência, porque o saber de experiência é conhecimento do singular e a ciência só pode sê-lo do universal. Além do mais, a filosofia clássica, como ontologia, como dialética, como saber segundo princípios, busca verdades que sejam independentes da experiência, que sejam válidas com independência da experiência. A razão tem que ser pura, tem que produzir ideias claras e distintas, e a experiência é sempre impura, confusa, demasiado ligada ao tempo, à fugacidade e à mutabilidade do tempo, demasiado ligada a situações concretas, particulares, contextuais, demasiado vinculada ao nosso corpo, a nossas paixões, a nossos amores e a nossos ódios. (…) Na origem de nossas formas dominantes de racionalidade, o saber está em outro lugar distinto do da experiência. Portanto, o logos do saber, a linguagem da teoria, a linguagem da ciência, não pode nunca ser a linguagem da experiência.
Esse olhar para o tecido da experiência, ou mesmo para aquele pensamento do Bauman, de que a prática moderna não tolera o vazio, me fazem lembrar imediatamente de certos tipos de jogador de futebol. Por exemplo, um jogador como Jean Pyerre, do Grêmio. Jean Pyerre é um artista do vazio. E o vazio, que um Jean Pyerre domina, não pode ser captado pelos algoritmos - pelo menos até hoje. Na verdade o algoritmo, como ídolo da prática moderna, abomina o vazio. Não por acaso, num futebol cada vez mais algorítmico, que encontra formas e mais formas de mensurar a intensidade, um jogador como ele passa a ser um incômodo, até mesmo um empecilho, ainda que Jean Pyerre dê sinais de que pode ser a solução, não o problema, e pode ser a solução exatamente porque caminha livre pelo vazio, pela ambivalência, pela indefinição, pela incompreensão. Um filme que, guardadas as devidas proporções e as peculiaridades de cada história, talvez também tenha se passado com um Paulo Henrique Ganso, com um Alex, mesmo com um Juan Román Riquelme - cuja adaptação ao Barcelona (de um ponto de vista geográfico e futebolístico) foi tão demasiadamente desgastante - e tantos outros.
É bem verdade que, não vai tardar, alguém tentará resolver esse problema por outra via ainda mais objetiva, talvez um superalgoritmo que se apresente dentro de um universo de master data, que por sua vez precisará de outros megasoftwares para ser decodificado. Não deixa de ser, por exemplo, o buraco em que se meteu o assistente de vídeo, que logo irá caminhar para formas ainda mais milimétricas de lidar, por exemplo, com o problema do impedimento, ainda que o problema do impedimento não seja em nada matemático: o impedimento é uma das mais fugidias expressões de ambivalência no jogo de futebol. Afinal, até que ponto o jogador impedido de fato tirou vantagem da sua posição inicial no decorrer do lance? Até que ponto 5mm adiante do adversário caracteriza, de fato, uma vantagem para o jogador da equipe que ataca? E o curioso é que, a esse tipo de perguntas, geralmente se sucede uma resposta aparentemente sóbria, algo como: não, mas aí trazemos muita subjetividade para o lance, isso não é bom!
Bom, talvez seja justamente o sintoma do que nos falta. Inclusive porque a ambivalência, além de ansiedade, causa medo. E não deixa de ser curioso que o abrigo da objetividade nos aproxime ainda mais, ao invés de nos afastar, de uma enorme sombra do subjetivo, do singular, do poético.
Que parece cada vez maior e mais presente - ainda que, na sua ambivalência, também se faça suficientemente discreta.