Logo nas primeiras páginas da edição #33 da belíssima revista The Tactical Room, há uma grande entrevista com Xavi Hernández, conduzida pelo Marti Perarnau. A conversa é de fato interessante, também porque Xavi tem alguns insights bem certeiros - por exemplo, a previsão de que Xabi Alonso logo se tornaria treinador. Num certo momento, quando divagava sobre o Barcelona de Pep Guardiola (particularmente sobre o ambiente do vestiário), Xavi faz um comentário importante, que ultrapassa as questões táticas onde costumam repousar as análises daquela equipe. Diz ele o seguinte:
"Por supuesto, el protagonista final es el jugador, pero el aspecto humano es clave en un vestuario. A mí, dame gente que sume. Gente que no traiga problemas al vestuario, juegue o no juegue (...). Eso es difícil, porque te aparece el ego, pero hay que posponer tu persona y someterla al bien del equipo. Es difícil y cuesta, pero esa es la clave: el aspecto humano, tener gente que sume y que el entrenador sea un conciliador. El entrenador ha de potenciar este factor de conciliar a gente que viven juntas casi diez horas diarias. Un grupo que se lleva mal entre sí no puede ser un grupo ganador." (p.26)
Se pensamos em Pep Guardiola como um dos maiores treinadores de futebol de todos os tempos (e se pensamos em Xavi Hernández como um dos maiores intérpretes e guardiões do barcelonismo de todos os tempos - este é um ponto importante) então precisamos admitir que Guardiola tem alguma fluência no idioma das relações humanas. Na verdade, parece bastante fluente - do seu jeito. O próprio Perarnau, no sexto capítulo do seu livro Pep Guardiola: A Evolução, transcreve uma fala de Pep na qual ele se define como um sujeito avesso a um determinado tipo de relação com os jogadores:
“Tento não ter uma relação íntima com os jogadores, porque não quero que confundam isso com as razões para entrarem em campo ou não. No fim, sou eu que tenho que decidir e prefiro fazer isso sem laços emocionais muito estreitos”
Com isso em mente - e algum treino dos olhos - foi com alguma surpresa que soube, na última quarta-feira, da entrevista conduzida pela excelente Natalie Gedra, na qual Guardiola diz que, uma vez que o futebol é business, não faz muita diferença se as relações com os atletas são boas ou não. Na verdade, até mais do que a própria declaração, me surpreendeu a repercussão - imaginei que haveria gente se lambuzando à beça com as falas de Pep, restringindo o papel das relações humanas no futebol e etc. Ao menos na minha bolha, nada feito: embora a entrevista tenha circulado bastante, não me apareceram muitas análises. De qualquer forma, há sim um debate interessante, que talvez esteja ao redor da seguinte pergunta: de um ponto de vista prático, qual é o lugar das relações humanas no trabalho de um treinador?
Não sei se se trata de um tema repetitivo, mas o fato é que muito antes de sermos apresentados a qualquer livro ou mesmo a qualquer quadro teórico (framework, diz-se nos ambientes acadêmicos) relativo ao futebol, nós já éramos capazes de falar sobre futebol, e podíamos fazê-lo com alguma segurança porque o futebol, ao seu modo, se enquadra nesse corpus de atividades cujo saber não se restringe ao intelecto: o saber do futebol está no corpo. Nos corpos dos grandes jogadores estão vários dos melhores livros jamais escritos sobre futebol. O que não deixa de ser uma subversão, especialmente num momento em que, os indícios não mentem, caminhamos alegremente rumo ao século dezessete, quando se achava que toda a verdade estava num determinado conjunto de ideias - preferencialmente, ideias claras e distintas. Evidente que há um campo intelectual de saberes sobre o futebol, mas muito antes da articulação de qualquer teoria, havia sujeitos jogando futebol - e pasmem! - jogando bem futebol. Na própria literatura científica, nomeadamente a partir do trabalho seminal de um autor chamado John R. Anderson (‘Acquisition of Cognitive Skills’, 1982) há uma proposta de distinção entre os saberes da cabeça e os saberes do corpo: conhecimentos declarativos e conhecimentos processuais.
Na mesma literatura, particularmente destinada ao entendimento dos processos de formação de treinadores esportivos, há outras respostas interessantes. Os professores Jean Côté e Wade Gilbert publicaram, em 2009, um artigo particularmente notável intitulado 'An Integrative Approach of Coaching Effectiveness and Expertise'. - um dos textos mais citados da área (somente no Google Scholar, 1070 citações). É um tratado que, como um dos argumentos centrais, defende que ainda que exista ‘um grande corpo de conhecimentos específicos relativos ao ato de treinar’ , há pelo menos outras duas categorias de conhecimentos a serem consideradas. Treinadores de excelência, além de dominar um certo conjunto de conhecimentos profissionais, também têm alguma fluência em conhecimentos interpessoais e conhecimentos intrapessoais.
No caso de um Pep Guardiola, me parece nítido que, como pano de fundo, está a convicção de que se trata de um sujeito repleto de conhecimentos profissionais. Aqui, me permitam uma nota de rodapé: de todas as diferenças entre Pep Guardiola e José Mourinho - cuja rivalidade basicamente fundou um outro tempo, no qual os treinadores estão no topo da pirâmide - há uma diferença particular, sobre a qual pouco se fala. O sucesso de Mourinho foi fortemente atribuído a uma suposta aplicação da Periodização Tática (portanto, razão metodológica), além de uma relação afetiva bastante particular com atletas dos mais diversos perfis, relação essa largamente documentada, especialmente nas publicações sobre o seu estilo de liderança. Guardiola, por sua vez, não é exatamente reconhecido por uma determinada metodologia de treinamento ou por uma determinada forma de relacionar-se - é mais reconhecido pela literácia tática. É daqui que vem parte importante do nosso entendimento de Guardiola como um gênio, nomeadamente um gênio da tática, muito embora, ao menos a meu ver, a natureza da genialidade de Guardiola esteja até mais nos afetos do que na razão (falarei disso a seguir).
Bom, como dizíamos, os conhecimentos profissionais são evidentemente relativos às especificidades da profissão. Se, por exemplo, falamos de um treinador de tênis, falamos de um sujeito que precisa ter alguns conhecimentos específicos sobre o tênis - algum conhecimento do tipo de metabolismo predominante na modalidade (spoiler: metabolismo aeróbio), algum conhecimento sobre a melhor amplitude de um swing no backhand numa devolução de primeiro saque, algum conhecimento sobre o instante exato de soltura da bola no toss, e o melhor ponto de contato entre a raquete e a bola de acordo com o efeito desejado para o saque, e algum refinamento sobre o melhor ângulo de pronação do antebraço de acordo com o efeito do saque - e coisas desse tipo.
No futebol, evidentemente, se sucede o mesmo.
Será?
Em 2017, quando já havia se notabilizado como um dos ótimos treinadores em nível internacional, Mauricio Pochettino deu uma excelente entrevista ao diário argentino La Nación. A conversa transita por alguns temas daquela época, um deles a possibilidade iminente de insucesso da Argentina nas Eliminatórias, com Pochettino sempre muito polido e etc. Mas então ele é perguntado sobre liderança, mais precisamente sobre as qualidades necessárias para liderar as novas gerações. Diz ele o seguinte:
“Hay que tratar de sentir como ellos sienten, empatizar… Hoy el líder humano es el líder que triunfa. La mano dura ya ha pasado al olvido. Los chicos también sienten pasión, pero hay que ayudarlos a descubrir la pasión, la inspiración… Mas que motivarlos, hay que cuidarlos... Hoy en día todo tiende a enfriar las relaciones, a sostenerlas por los mensajitos, whatsapp, sky…, a la gente le cuesta relacionarse, hablarse, mirarse a la cara, tocarse... Los que venimos de otra generación, y quedamos en el medio, tenemos la responsabilidad de que esta nueva generación no pierda el tocarse, hablarse, relacionarse, que en definitiva es el fútbol. La táctica no es más que la relación que tienes tu con tu compañero…, al final es eso. En base a cómo nos relacionamos vamos a definir cómo actuamos.”
Aqui, me parece que temos uma linha de corte importante entre um pedaço do que diz o Guardiola, na entrevista a que me referi, e o que pensa um sujeito como o Pochettino. Não deixa de ser, em certa medida, uma diferença no entendimento da palavra e da prática da liderança, assim como uma ruptura na noção de autoridade - tema bastante comum nos círculos pedagógicos, particularmente relativos à autoridade dos professores, mais ainda em tempos em que os alunos e alunas vivem absortos nas redes sociais. Me parece que Guardiola não coloca as relações na ordem do dia não porque não saiba da sua importância, mas porque, num estado de crônica pressão externa e interna, que paradoxalmente é fruto do seu próprio sucesso, ele talvez entenda que elas não são prioritárias. Treinadores como Pochettino, ao que tudo indica, partem da premissa contrária: as relações não são apenas importantes, são a pedra angular da performance. O primeiro capítulo da série All or Nothing: Tottenham dá uma noção básica da importância do argentino no cultivo de um ambiente humano que, muito provavelmente, foi bastante decisivo nos voos alçados pelos Spurs (aqui, considerar que o Tottenham chegou à Final da UEFA Champions League justamente na temporada em que não contratou absolutamente nenhum reforço).
É claro que não se trata apenas de Pochettino: Julian Nagelsmann já disse, mais de uma vez, que um treinador é composto de algo como 30% de conhecimentos táticos e 70% de habilidades sociais. Jurgen Klopp, para além do gegenpressing, é um sujeito reconhecido pelo magnetismo capaz de atrair jornalistas, torcedores - e atletas. Abel Ferreira, hoje absolutamente querido pela imprensa (menos pelos processos do que pelos produtos), disse textualmente, na recente entrevista ao Sportv, que a relação treinador-atletas requer uma dimensão de amor. Carlo Ancelotti, precisamente um dia depois da publicação da recente entrevista de Guardiola, teve um perfil publicado no The Athletic, no qual também falava sobre amor, do Everton como um ambiente repleto de amor, e da comunicação necessária num ambiente de amor. Segue o trecho - em tradução livre:
“Há uma comunicação distinta e diferente com os jogadores. Você precisa ser mais paciente com os erros que eles podem cometer e todas essas coisas. Mas, mais importante, você não pode perder a confiança no que nós fazemos juntos.”
(confiança, diga-se, é a arte de fiar juntos, de um modo que não existe confiança que não seja essencialmente intersubjetiva - a confiança só existe em relação a algo ou alguém)
Aqui no Brasil, embora me pareça haver um certo cabeçadurismo nesse assunto - particularmente derivado do nosso complexo de vira-latas, que cristalizou a noção de que o primeiro e principal objetivo do futebol brasileiro deva ser tirar a suposta diferença intelectual que nos separa dos deuses europeus - Fernando Diniz tem sido uma voz importante na lembrança das relações humanas, e de como elas se situam, por vezes, na base do jogar. Aliás, como falávamos anteriormente sobre o corpo, Diniz é um sujeito que encarna (tem na própria carne) toda a infinitude do humano, o que não deixa de ser pedagógico caso ainda pensemos nas relações a partir de um certo traço de puritanismo ou de um certo traço de moralismo. Tratar gente como gente no futebol é imperativo e urgente, mas isso não significa que o trato no futebol deva ser o mesmo de uma liturgia religiosa - na verdade, é precisamente o contrário.
É claro que os conhecimentos profissionais são absolutamente relevantes também no futebol. Mas isso que nós chamamos de conhecimentos não são unidades estáveis e/ou universais - na verdade, os conhecimentos são fluidos, que também se fazem a partir de relações, relações essas profundamente dependentes do ambiente em que se encontram. Por isso, de um lado, é absolutamente válido questionar quais são de fato os conhecimentos essenciais na formação de um treinador de futebol (naquela linha de diferenciar o som do ruído). De outro, precisamos avançar na bifurcação de que falávamos acima, que agora nos apresenta os conhecimentos inter e intrapessoais.
Começando pelo fim, os conhecimentos intrapessoais são fruto da relação do treinador com o espelho - ou, numa linguagem menos metafórica, da sua capacidade de ‘introspecção e de reflexão’. Reflexão, diga-se, é uma das palavras saturadas na literatura de formação de treinadores, especialmente a literatura derivada de um viés mais cognitivista do processo formativo. Embora haja de fato uma dimensão reflexiva importante na organização da prática pedagógica, vez por outra parece que o que diferencia os treinadores de excelência dos outros é um suposto refinamento da reflexão, como se o pensamento de um Guardiola, por exemplo, funcionasse de maneira muito diferente de nós, meros mortais. Num dos capítulos da minha dissertação de mestrado, publicado no ano passado, questionei parcialmente essa iconoclastia da reflexão e apresentei, inclusive como um dos caminhos da minha pesquisa, o papel dos afetos - e não somente da reflexão - nos processos de articulação das filosofias de treinadores esportivos.
Para quem não está acostumado à rotina de organização, aplicação e avaliação de uma ou de muitas sessões de treinamentos, talvez não seja exatamente compreensível o que direi a seguir, mas posso dizer com alguma segurança que é assustador como a qualidade de uma sessão de treino pode não ter absolutamente nada a ver com a sintonia ou com a profundidade dos conteúdos que selecionamos - mas com o estado afetivo do treinador na execução do treinamento (aqui, indico a dura carta de despedida de Cesare Prandelli, recém-saído da Fiorentina). O treinamento, de um ponto de vista puramente objetivo, é o mesmo para todos os envolvidos no processo, mas a percepção que se tem do treino - especialmente quando você é o responsável pela organização e pela emergência de determinados ideais - é violentamente subjetiva, de um modo que ainda que todos os dados de todos os softwares possíveis indiquem que o treino foi um sucesso, pode ser que sejamos vítimas do nosso próprio sangue, de um modo que - e este é o ponto fundamental - quando o treinador não está bem consigo mesmo, em razão de qualquer desequilíbrio afetivo, tenha certeza de que haverá alguma repercussão, por mínima que seja, no ambiente do treino. O processo de treino não é meramente resultado de uma determinada metodologia. O processo de treino é resultado de uma série de variáveis em constante interação - uma delas a didática a partir da qual se aplica o método. Mais do que isso, o treino não é apenas um conjunto abstrato de ideias, mas uma realidade concreta modulada por interações humanas no mais alto grau de complexidade.
É por isso, diga-se, que acho que a genialidade de Guardiola está até mais nas emoções do que na razão: quando o olhamos, com toda a distância que nos separa e etc, parece nítido se tratar de um sujeito cujas emoções saltam pelos poros - não apenas porque é completamente apaixonado por futebol, mas porque talvez se enquadre naquela categoria que citei anteriormente, dos que sabem de futebol primeiro pelo corpo, para depois receber várias demãos de saberes conscientemente organizados. Não deveriam surpreender, por exemplo, os perfis dos seus assistentes ao longo da carreira. Pensem em Tito Vilanova, Doménec Torrent, Mikel Arteta e Juanma Lillo, por exemplo, e me digam se algum deles, pelo menos na aparência, é tão ou mais colérico do que o próprio Pep. Guardiola, antes de tudo, racionaliza pelo corpo - fez isso como jogador e hoje faz, brilhantemente, como treinador - e para se articular uma equipe de trabalho equilibrada é preciso reunir perfis complementares.
Não me admira, portanto, que Guardiola não se veja como um mestre das relações interpessoais - grande parte da sua energia afetiva arde nele mesmo. O curioso é que parte razoável da literatura da área nos lembra que a função de treinadores está quase que intimamente ligada à função do professor: em ambos os casos, a natureza da atividade não é a do isolamento, mas da interação, e portanto as dinâmicas que regulam a atividade de treinadores e professores são primordialmente sociais. Não é por acaso que Xavi se refere à capacidade de conciliação, Pochettino articula uma liderança humanizada, Ancelotti articula uma comunicação assertiva, Fernando Diniz fala do papel psicossocial do treinador (especialmente brasileiro) e por aí vai. Sobre isso, anexo em tradução livre outro trecho do artigo dos professores Côté e Gilbert, do qual falamos anteriormente:
“Uma conceituação multidirecional das interações treinador-atleta foi defendida em trabalhos teóricos recentes, o que sugere que o ato de treinar é um processo complexo e com influências recíprocas baseadas em sistemas de interações sociais. É importante que os treinadores desenvolvam continuamente sua base de conhecimentos interpessoais para que possam se comunicar de maneira adequada e eficaz com seus atletas e outras pessoas. Da mesma forma, atletas de diferentes idades e níveis competitivos exigem que os treinadores se relacionem de maneiras diferentes com esses atletas e seu contexto social específico. ”
No mesmo texto, ainda no âmbito do papel das relações interpessoais no ato de treinar, são apresentadas pelo menos quatro repercussões esperadas, chamadas de 4C’s: competência, confiança, conexão e caráter.
Em linhas gerais, conexão é a capacidade de relacionar-se, de maneira saudável, com os outros e consigo mesmo. Caráter é a capacidade de desenvolver qualidades como respeito, integridade, lealdade ao grupo e etc. No caso das duas qualidades restantes, competência e confiança - a primeira relacionada com a percepção subjetiva de saber fazer uma dada atividade e a segunda relacionada com a percepção de auto-estima e motivação intrínseca - vale fazer uma citação específica: num artigo de 2008, cujo primeiro autor é o pesquisador americano Micah Rieke, intitulado ‘Servant Leadership in Sport: a New Paradigm for Effective Coach Behaviour’, os autores argumentam que uma ‘liderança servil’ (tradução livre) está diretamente relacionada com o desenvolvimento de maiores níveis subjetivos de competência e de confiança do que uma liderança não-servil, mais autocrática. Mas o que seriam os líderes servis, afinal?
“(...) os líderes servis colocam as necessidades, aspirações e interesses das outras pessoas acima das suas próprias. A principal motivação do líder servil, paradoxalmente, é servir primeiro em vez de liderar. Essa noção (…) é um modelo de liderança “de cabeça para baixo” ou invertido. Os modelos tradicionais de liderança colocam o líder no topo da “pirâmide” e exigem que os subordinados sigam suas diretrizes. O líder-servil vira a pirâmide de cabeça para baixo e se posiciona na base da hierarquia. Em um ambiente de liderança servil, os subordinados recebem descrições de funções ou funções claras, e a função do líder é “servir” ou ajudar o subordinado a executar essas funções. Essa estrutura não implica que os padrões se tornem frouxos ou que “os internos dirijam o asilo”. Muito pelo contrário. Os subordinados, com a ajuda do líder-servil, são responsáveis por executar suas funções com eficácia e, se não puderem fazê-lo, sanções serão impostas. O resultado final, teoricamente, é um ambiente de trabalho onde os relacionamentos são cultivados, todos são valorizados, os padrões são mantidos e a produtividade aumentada.”
E aqui chegamos naquele que parece o paradoxo de Guardiola - ao menos quando olhamos para a entrevista concedida à Natalie Gedra: de um lado, a percepção subjetiva das forças que lhe afligem, particularmente de um ponto de vista emocional, forças essas que se convertem numa espécie de mola propulsora da carreira absolutamente brilhante que articulou até hoje - e que só pode ser brilhante como é porque acumulou inúmeros resultados positivos. De outro, um certo corpo de evidências que apontam que o desempenho (inclusive de um ponto de vista do modelo de jogo, se considerarmos o modelo como a representação crônica de um determinado conjunto de relações) depende diretamente de um certo nível e de uma certa qualidade de relações humanas, a partir das quais a mágica acontece.
No mesmo Pep Guardiola: A Evolução, que citamos anteriormente, Perarnau faz uma observação importante neste sentido:
“Foi assim, com a mediação de Lahm e Neuer, e sempre apoiando firmemente o elemento mais fraco do grupo, que se estabeleceu uma verdadeira relação de amor entre os jogadores do Bayern e o treinador catalão. Amor é uma palavra forte e possivelmente imprópria no mundo do futebol, pouco dado a essa expressão, mas é a que Guardiola usa sempre e a que os jogadores usam com ele. Eu a escutei inúmeras vezes no elevador da Allianz Arena: “Te amo, Philipp, te amo!”, gritava Pep num dia qualquer, enquanto abraçava o capitão e lhe dava um par de beijos na bochecha.”
Um dos ensinamentos da vida adulta é que as relações de amor não dependem de qualquer admissão - elas apenas existem, independentemente da vontade. Não posso dizer em que grau isso se aplica a Pep Guardiola. Mas posso dizer, com segurança, que um treinador nunca é treinador pela metade - treinadores são o que são por inteiro. Um treinador muito acima da média, num nível quase que extraterrestre, provavelmente carrega uma conjunção de saberes que fazem coisas realmente impressionantes porque existem integrados - intelecto e carne, independentemente da vontade.
O que não deixa de ser outro paradoxo, pois também não faltam exemplos do contrário, quando o conhecimento, ao invés de iluminar, assalta a espontaneidade do ser e emperra o crescimento. Será mesmo possível que os saberes interrompam a sabedoria do corpo?
A saber.
Parabéns pelo texto!
Ótimo texto!