Do que falamos quando falamos de jogo, afinal?
Um ensaio sobre o futebol enquanto herdeiro do sistema jogo
Dois cãezinhos brincam, agitada e divertidamente, sem parar, num jardim ou num parque qualquer. Rolam um sobre o outro, correm um atrás do outro, depois o outro atrás do primeiro, num espaço bastante específico - ainda que não seja um espaço visualmente demarcado. Latem diversas vezes, alto e baixo, supondo braveza ou por pura provocação, depois se encontram de novo, rolando mais uma vez um sobre o outro - numa brincadeira que não tem nenhum outro interesse que não nela própria.
Quando dois ou mais cãezinhos brincam entre si, eles não brincam para preencher qualquer necessidade biológica primária. Não, quando dois ou mais cãezinhos brincam entre si, eles brincam pelo puro e simples prazer de brincar, pelo próprio sentido do brincar - o que não deixa de ser curioso porque, até onde se sabe, nenhum cãozinho do mundo está dotado dessa suposta maravilha evolutiva a que nós, humanos, damos o nome de razão.
Não sei se vocês compartilham da mesma impressão, mas na minha bolha sobre futebol, particularmente das redes sociais, sinto uma certa preocupação e mesmo uma certa ansiedade de alguns colegas em demarcar que estão ‘falando sobre o jogo’. De um ponto de vista pragmático, é uma preocupação legítima: se considerarmos que o futebol mobiliza todo e qualquer tipo de paixão (e que as paixões humanas mobilizam uma indústria importante), é bastante compreensível que grande parte do debate sobre futebol seja herdeiro de uma tradição fortemente afetiva.
Só que neste momento histórico, por motivos mil, há um certo desejo de ruptura. Especialmente de um ponto de vista do jornalismo (mas não apenas), parece haver um deslocamento de olhares mais recheados de afetos para outros mais racionais - talvez porque os afetos sejam vistos como uma porta de entrada para polêmicas marginais ao jogo jogado. Também existe uma tendência, ao menos falada, de evitar explicações mais simplórias sobre o jogo de futebol, assim como de afrouxar os limites que separam o observador externo do treinador, de um modo que a qualidade da informação que chega ao consumidor final esteja mais vinculada ao real e, portanto, seja mais digna de valor. Todas preocupações absolutamente legítimas.
Mas toda ruptura deixa sintomas. Da maneira como o debate tem se constituído, também parece bastante razoável que o ‘falar sobre o jogo’ é, na verdade, um eufemismo para um falar tático do jogo de futebol. Ainda não há um mercado popular bem estabelecido de análises especialmente fisiológicas, ou especialmente biomecânicas, ou mesmo especialmente psicológicas - mas há um incontável volume - e uma ansiedade notável - por análises especialmente táticas. O fato é que o ‘falar sobre o jogo’ é, particularmente, o falar de um ponto de vista tático e, mais do que isso, é de fato uma forma de falar - no singular. Para se falar sobre o jogo, é preciso um determinado conjunto de palavras, um léxico muito específico, que parece que melhor se acomoda quanto mais especializado for, num tipo de conversa que, no fim das contas. vai separando gradualmente quem está supostamente habilitado a ‘falar sobre o jogo’ e, é claro, quem não está.
Neste texto, que escrevo como uma introdução ao tema, gostaria de apresentar duas premissas. A primeira é que, de fato, o ‘falar sobre o jogo’ pode ser um eufemismo para falar de uma visão muito específica de tática - o que, sem querer, pode se converter numa anatomia do jogo de futebol. A segunda, mais importante, reduzindo o jogo apenas à dimensão tática, o ‘falar sobre o jogo’ pode ser, na verdade, o falar sobre um não-jogo. E isso acontece porque talvez precisemos considerar algumas dimensões do jogo que são anteriores à tática e, mais do que isso, anteriores ao jogo de futebol.
O exemplo dos cãezinhos, que ilustrei no primeiro parágrafo, tem uma razão de ser. Está citado logo nas primeiras páginas de um livro absolutamente importante na história do estudo sobre o jogo. O livro em questão se chama Homo Ludens, publicado pelo historiador holandês Johan Huizinga, em 1938. Sobre os cãezinhos, ainda no primeiro capítulo, ele diz o seguinte:
Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e de gestos. Respeitam a regra que os proíbem morderem, pelo menos com violência, a orelha do próximo. Fingem estar zangados e, o que é mais importante, em tudo isso experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito mais complexas, verdadeiras competições, belas representações destinadas a um público.
Ao exemplo dos cãezinhos, que se estende a quase que todos os outros animais (inclusive nos duros jogos de sobrevivência) podemos tranquilamente somar o exemplo das crianças. Ainda que carentes de profundos mecanismos de racionalidade, as crianças são espontaneamente dominadas pelo espírito do jogo. A criança que suga o seio da mãe, por exemplo, não o faz a partir de nenhuma deliberação racional, assim como não tem a mais tenra noção das implicações simbólicas que o mesmíssimo ato passa a ter na vida adulta. Mesmo assim, há uma inclinação natural da criança em sugar o seio da mãe, ora com mais delicadeza, ora com alguma violência, que não se resume às inclinações biológicas e que se situa dentro de um certo limite de jogo, do qual fazem parte, inseparavelmente, filho e mãe. E de fato, o comportamento infantil é bastante significativo de um ponto de vista do jogo. Sobre isso, há uma passagem muito bonita, proferida pelo Roland Barthes, filósofo francês do último século, mais tarde citada por um dos grandes mestres brasileiros dos jogos da linguagem, que foi o Rubem Alves (mais particularmente, num livro chamado Variações Sobre o Prazer). Numa aula ministrada no início dos anos 1950, já na sua maturidade, Barthes disse o seguinte:
"Gostaria, pois, que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de todo um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo com que delas se faz."
Tanto no caso dos cãezinhos quanto no caso das crianças, repare que há um conflito bastante acentuado entre natureza e cultura. E uma das faces da cultura está precisamente nessa tentativa de domar a natureza, de ornamentá-la de acordo com um conjunto particular de simbolismos. Esses ornamentos, como qualquer outra coisa no campo da ética, não são exatamente neutros: pelo contrário, são projetos enviesados, herdeiros de um certo conjunto de ideias, conjunto esse culturalmente estabelecido. O próprio avanço da técnica, que mais tarde rebatizado pelo nome de tecnologia, é precisamente uma tentativa de domínio da natureza em benefício humano. Digo isso porque se quisermos puxar o fio e falar de fato sobre o jogo, uma das primeiras coisas a se considerar é que há um conflito bastante semelhante entre uma natureza particular do jogo e, em contrapartida, um certo conjunto de simbolismos - individuais, grupais e coletivos - de que se lança mão para tentar equilibrar (e eventualmente dominar) a natureza dominante.
Só que há um ponto importante, que segundo o próprio Huizinga, reside precisamente na relação entre o jogo e a cultura. O motivo que permite que os cãezinhos possam jogar, ainda que não estejam dotados de profundos elementos de racionalidade, é bastante objetivo: o jogo é anterior à cultura. Da mesma forma como a cultura surge como um instrumento de controle da natureza a posteriori - com as virtudes e os vícios envolvidos aqui - a cultura também se apresenta após o jogo. Ou, nas palavras do próprio Huizinga, literalmente uma oração antes da citação que fiz anteriormente:
É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à ideia geral de jogo.
O jogo de futebol não é um sistema à parte, afastado dos outros sistemas da vida. Não, o jogo de futebol é uma espécie de microssistema do sistema jogo. Por isso, se quisermos falar sobre o jogo, podemos perfeitamente fazê-lo dentro de certas especificidades (táticas, por exemplo), mas sem perder de vista que qualquer especificidade não pode se desenhar na contramão da sua gênese.
Sobre isso, me permitam uma observação: o saber de bom nível não se faz pela quantidade, se faz pela relação. O bom saber não é aquele que sabe mais - o bom saber é o que sabe melhor. Existe uma noção, que também está se criando no futebol, mas que não é própria da nossa área, que entende que o saber humano é similar a um passeio num shopping epistêmico, onde se adquirem uma ou mais formas de saber, dentro de determinados estabelecimentos (disciplinas), normalmente separados entre si. Não surpreende que, como acontece com as compras, nossos desejos não se satisfaçam com pouco: está realmente cristalizada nos nossos corpos a noção de que, se quisermos saber de algo, precisamos nos entupir nos shoppings do saber, como se fôssemos apenas ou especialmente almoxarifados de saberes, que sobrevivem do acúmulo - ainda que alguns daqueles saberes se tornem desgastados e eventualmente mofados. Digo isso porque não escrevo este texto como uma crítica, nem mesmo como uma advertência: não se sabe de tudo e o futebol, como a vida que se vive, não depende de saberes universais, nem de manuais que nos digam o que se deve e o que não se deve fazer. Escrevo este texto como uma sugestão, para um eventual alargamento de fronteiras, baseado em certos saberes e em uma certa prática, que são absolutamente particulares. Por isso, gostaria que esse texto não soasse como um saber a mais, mas talvez como um saber melhor.
Isto dito, e tendo em conta os fios que ligam, irresistivelmente, o microssistema jogo de futebol ao macrossistema jogo, vamos dar um passo adiante - ainda via Huizinga, no mesmo Homo Ludens. Aqui, ele responde a pergunta cabal: do que falamos quando falamos de jogo, afinal?
Sob o ângulo da forma, é portanto possível, em poucas palavras, definir o jogo como uma ação livre, vivenciada como fictícia e situada fora da vida comum, capaz no entanto de absorver totalmente o jogador; uma ação desprovida de qualquer interesse material e de qualquer utilidade; que se realiza em um tempo e um espaço expressamente circunscritos, desenrolando-se com ordem segundo regras dadas e produzindo na vida relações de grupo que voluntariamente se cercam de mistério ou acentuam pelo disfarce sua estranheza em relação ao mundo habitual.
Bom, me permitam trabalhar um pouquinho dessas coisas que estão ali. Por exemplo, se falamos que o jogo é livre, gostaria de sugerir - como me fora ensinado nas aulas de Pedagogia do Jogo, ministradas pelo professor Alcides Scaglia - que pensássemos a liberdade como sinônimo de ludicidade. O caráter lúdico do jogo não existe porque o jogo é uma atividade menor. Pelo contrário, o jogo precisa existir pela seriedade. O jogador que não leva o jogo a sério, independentemente da natureza do jogo que se joga, se enquadra naquilo que podemos chamar de estraga-prazeres - e tende a ser enxotado pelos pares e pelo jogo. O caráter do jogo é profundamente lúdico, o que significa que a existência do jogo depende da mais profunda liberdade do jogador relativa ao ato de jogar. Aliás, se não entrarmos indefesos nesse debate que está se criando aqui e ali, que recorta uma ou mais formas de jogar pelo seu suposto grau de liberdade, talvez até pudéssemos dizer que o grau de fluidez ofensiva de uma dada equipe está diretamente relacionado a um certo grau de ludicidade imposto ou retirado pelo modelo de jogo. Por isso, inclusive, acho importante fugirmos de alguns desses malabarismos retóricos e admitirmos que sim, há determinadas formas de se jogar futebol, particularmente na fase ofensiva, que partem de uma premissa de restrição de movimentos de um ou mais atletas sem bola, sob o pretexto de que isso pode, em contrapartida, se converter em vantagens ofensivas irrefutáveis. O que de fato podemos discutir um pouco mais - e pretendo fazer isso em breve - é outra coisa: em que medida a própria restrição pode ser uma estratégia potencializadora de liberdade?
Uma segunda característica importante, se quisermos falar sobre jogo, está no fato de ser uma atividade fictícia e situada fora da vida comum. Em outras palavras: o jogo é uma suspensão temporária do real. Quando nos dispomos a jogar - e vamos pensando no jogo de um ponto de vista amplo mesmo, no jogo da linguagem envolvido na persuasão, no campo de jogo presente nas relações afetivas, no campo dos jogos que fazemos conosco a partir da nossa própria imaginação), basicamente nos dispomos a fazer uma pausa na vida corrente, porque o jogo, como diremos a seguir, não tem absolutamente nenhum outro compromisso utilitário que não seja o puro e simples prazer de jogar. Da pausa da vida cotidiana, reparem bem, segue-se a entrada num outro estado, do qual emprestamos elementos da vida corrente, mas os aplicamos neste outro mundo, um mundo de fantasia, onde se realiza o mundo do jogo. A esse estado, de suspensão temporária do real em nome de um outro real, nós podemos - referência ao professor Alcides Scaglia - dar o nome de estado de jogo.
O estado de jogo é um requisito básico do ato de jogar, porque o jogo - e este é um ponto importante - não se encerra na objetividade: pelo contrário, se quisermos falar sobre o jogo, precisamos considerar um campo absolutamente fértil de articulações subjetivas. Sobre isso, escreve o professor João Batista Freire, outra referência insofismável do estudo sobre o jogo, no mais do que clássico livro O Jogo: Entre o riso e o choro:
O jogo não é um caso à parte das demais atividades humanas. Como todas, é vida manifestando-se e, como elas, manifestando-se de maneira típica, quando encontra ambiente fértil para isso. E, tudo indica, é o mundo do espírito humano, da subjetividade que acolhe o lúdico e o faz crescer. Quando o homem volta-se para si, livre das amarras da objetividade, pode jogar. E que não se confunda esse mundo interno que acolhe o jogo com qualquer outra atividade interna, mental, que muitas delas subjugam o homem, pelas amarras estabelecidas por injunções externas ou internas.
Quando uma criança brinca com a bola contra a parede - como eu e vocês fizemos tantas vezes na infância - ela não apenas está mergulhada num estado absolutamente alheio à vida corrente, como está mergulhada não pela característica da atividade em si (afinal, quem observa a criança que joga não entra, necessariamente, num estado de jogo), mas pela relação subjetiva que é capaz de fazer com aquela atividade. É a disposição da criança em entregar-se ao jogo que caracteriza o ato de jogar - e não a manifestação objetiva em si. Não é por acaso, diga-se, que um elemento absolutamente fundamental do jogo está na passagem do tempo - afinal, por que o tempo passa tão rápido quando jogamos? Se quisermos falar sobre o jogo, precisamos considerar que a passagem do tempo, no mundo do jogo, é absolutamente diferente da passagem do tempo na vida corrente: quem controla o tempo da vida é o deus Khrónos, enquanto que quem coordena o tempo do jogo e outra divindade, o deus Kairos. Sobre isso, segue o professor João Freire:
Temos dois tempos na nossa vida, esse que passa muito depressa, que é o tempo das tarefas reais, das coisas novas para aprender, do trabalho para fazer, que é previsível, cronometrado, sempre ajustado, Khrónos, e o tempo do eterno, o tempo sem tempo, em que as coisas do real se perdem, Kairos. Igual quando a gente sonha e parece que sonhou horas a fio, e acorda e vê que dormiu há pouco.
Por isso, pelo menos a meu ver, é preciso ter muitos dedos para se analisar um jogo de futebol - se o quisermos analisar de um ponto de vista não apenas do futebol, mas do jogo. É bem verdade que o jogo que se apresenta aos nossos olhos se apresenta objetivamente. Mas o estado de espírito do analista (principalmente quando o analista se confunde com o anatomista, que deseja analisar o jogo como se analisam as lâminas teciduais do corpo dissecado, com um microscópio embaixo do braço) é absolutamente diferente do estado de jogo e das manifestações espaço-temporais do estado de jogo sob o espírito do jogador. A realidade do jogador é outra, as vias cognitivas e emocionais a partir das quais o jogador reage aos estímulos do jogo são outras quando comparadas às vias de quem o analisa, de um modo que a análise de jogo - não apenas a análise tática - não pode se resumir à descrição objetiva de uma ou mais manifestações, mas deve estar ciente de todo o campo de subjetividade que caracteriza o mundo do jogo. Uma análise única e exclusivamente objetiva, que desconsidera a subjetividade do atleta - e, obviamente, a subjetividade do próprio analista, que responde a um determinado conjunto de simbolismos que lhe foram ensinados - talvez seja qualquer coisa que não um falar sobre o jogo.
Aliás, este é o mesmo dilema a que estamos submetidos como treinadores - especialmente quando pensamos o processo de treino a partir do jogo. Na literatura científica, o ensino e a aprendizagem do esporte a partir dos jogos não é exatamente uma novidade - estão no âmbito dos chamados game-based approaches (GBA’s), cultivados particularmente dos anos 60 em diante. A questão é que mesmo os processos de treino vinculados ao jogo têm as suas capacidades de ensino e de aprendizagem profundamente dependentes da subjetividade do jogador que joga. Por exemplo, de um ponto de vista pedagógico, um mesmo jogo, aplicado a um grupo de 30 atletas, na verdade se transforma 30 jogos diferentes, porque a potência pedagógica não está no jogo em si, mas nas relações que cada atleta, singularmente, é capaz de fazer com o jogo, dentro daquele ambiente, a partir de uma certa didática - que também é absolutamente subjetiva. Da mesma forma, vejam que interessante, é um contrassenso pedagógico ofertar aos atletas um processo de treino pautado nos jogos e, ao mesmo tempo, interromper continuamente as atividades aplicadas, ainda que para oferecer a mais elaborada instrução. Toda e qualquer interrupção, de um ponto de vista pedagógico, suspende o estado de jogo, devolve o jogador ao tempo e ao espaço da vida corrente, de um modo que a aprendizagem passa a caducar - pois ela depende precisamente da entrega genuína ao jogo a partir da qual brotam estados ótimos de um ponto de vista cognitivo, emocional e, em última análise, humano. Em 2019, escrevi um artigo para a Universidade do Futebol justamente sobre isso, sobre a pedagogia das pausas no treinamento - coisa que a prática nos ensina bastante.
Huizinga ainda diz que o jogo é uma ação desprovida de qualquer interesse material e de qualquer utilidade. A relação com os interesses materiais é digna de destaque porque, vocês sabem, há várias formas diferentes de jogo. Roger Caillois, que escreveria outro tratado seminal sobre o jogo (Os Jogos e os Homens, de 1958), observa que de fato existe um escape ao interesse material, porque o jogo, ainda que quando envolve dinheiro, não é particularmente um produtor, mas um transferidor de riquezas preexistentes. Ao mesmo tempo, como escreve o próprio Caillois, Huizinga não se aprofundou em dinâmicas como as dos jogos de azar, na qual existe uma certa materialidade em jogo.
Mas o que de fato é muito importante é o entendimento do jogo enquanto desprovido de utilidade. Aqui, reparem a afinidade entre o jogo e a filosofia. A filosofia, como vocês bem sabem, também é desprovida de utilidade. Esse, inclusive, é um dos (frágeis) argumentos que se usa na crítica do ensino de filosofia para jovens, ou mesmo para adultos, pois de um ponto de vista pragmático, a filosofia não serve para absolutamente nada. Mas o crítico, que geralmente se regozija da afirmação supostamente genial, não percebe a obviedade: a filosofia de fato não serve a nada, ou seja, não a está a serviço de uma entidade objetiva, não é uma utilidade em vias de outra coisa, não é exatamente um meio: ela é capaz de encerrar-se em si mesma. Numa sociedade em que tudo e todos precisam, obrigatoriamente, demonstrar-se meios para determinados fins, não deixa de ser uma subversão criar-se pelo contrário.
No jogo, enquanto atividade voluntária embebida de subjetividade, acontece absolutamente o mesmo. Não há utilidade subjacente ao jogo. Assim como os cãezinhos, que jogam pelo prazer de jogar, o jogo humano não está vinculado a qualquer necessidade imediata - ao menos não de um ponto de vista fisiológico (pode sim sê-lo de um ponto de vista poético). Sendo uma atividade desprovida de utilidade, o jogo só pode ter fim nele mesmo, o que significa que o jogo só pode ser autotélico. O jogo não serve a nenhum outro senhor que não a si próprio.
Se ainda lembramos que o jogo é anterior à cultura e potencialmente anterior à própria existência humana, o que quero dizer é que o jogo, embora sensível aos estímulos dos jogadores que jogam - ou dos treinadores, é claro - não apenas não tem nenhum compromisso com as vontades humanas, por mais meticulosamente treinadas que sejam, como tem uma razão própria, alheia à razão e às vontades e aos delírios humanos. Não por acaso, uma das características absolutamente centrais do jogo reside na imprevisibilidade. O analista, como observador externo, o treinador como observador-agente, e o jogador, enquanto agente, podem perfeitamente rastrear padrões individuais, grupais e coletivos do jogo que se pretende jogar, mas isso não significa, sob nenhuma hipótese, que o jogo esteja sob o domínio dos rastreadores: o jogo serve a si mesmo. Se quisermos falar sobre o jogo, precisamos ter muito claro que o papel da vontade humana, mesmo que a partir do mais refinado modelo de jogo, é muito mais dependente das vontades do jogo do que de quem o joga. O que podemos fazer, da mesma forma como insinuamos uma relação entre natureza e cultura, é refinar os nossos projetos de ataque, de defesa, de transições e de bolas paradas, não como uma forma pretensiosa de domar o jogo, como domaríamos nossos cãezinhos, mas de identificação e de busca de respostas aos problemas que do jogo - dentro desse intrincado sistema de interações e retroações, comunicações e contra-comunicações, a partir desse sistema de profunda complexidade que ele nos apresenta continuamente.
Como escrevi no início, gostaria que esse fosse um texto introdutório, de um tema que vamos retomar em breve. Por ora, gostaria que pensássemos naquilo que disse no começo, e que fomos construindo no texto: falar sobre o jogo não é bem sinônimo de falar apenas e tão somente sobre a dimensão tática do jogo, assim como falar sobre o jogo não é exatamente falar do jogo de futebol - que se apresenta como uma manifestação particular de jogo.
Falar sobre o jogo é também, em certa medida, dar um passo atrás - é olhar de sobrevoo. De um modo que, talvez pela floresta, possamos saber um pouco melhor das próprias árvores.
PS: este texto jamais seria possível não fosse o pouco que sei sobre o jogo, particularmente a partir do professor João Batista Freire e, especialmente, do seu orientando Alcides Scaglia - por quem tenho o privilégio de ser orientado no falar e no fazer sobre o jogo da vida.
Mais um belo texto! Parabéns Hudson.